A legitimidade da independência do Brasil
- Guilherme Sousa Rocha
- 31 de ago. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 22 de set. de 2022
A independência do Brasil prova que lei e justiça nem sempre andam juntas. Se os brasileiros de 1822 e seu líder português estivessem presos à lei vigente, D. Pedro teria voltado para a Europa com o rabo entre as pernas. Mas as pessoas que fizeram a independência tiveram a sagacidade de fazer uma lei nova.
Acima de tudo, uma sociedade civilizada precisa de valores, costumes e ritos que sirvam de norte, para desafiar a lei vigente, se necessário. Nenhum país do mundo tolera sem contestação que uma parte force a separação. Pelo contrário, é costumeiro que tentativas de dissolução sejam repreendidas e punidas. Então, como um povo pode legitimamente reivindicar a sua independência?
Aqui devemos analisar aspectos supralegais. A lei não possui resposta para tudo, principalmente se a própria lei for injusta. Nestes casos, apenas a firmeza moral e a coragem podem conduzir uma nação à justa separação do país original.
A independência do Brasil se reveste de uma série de requisitos para se viabilizar:
Abusos da metrópole. Por que alguém manteria laços com a matriz que lhe fustiga? Sendo injusta a escravidão entre os homens, o colonialismo brutal é injusto entre as nações.
Desde 1808, Portugal vivia na singular condição de sediar seu reino na colônia. O Brasil não era mais a vaca leiteira de recursos nem a terra selvagem de desterro. O Brasil era a própria sede do reino português, como consequência das guerras napoleônicas, com reconhecimento explícito da condição de reino unido a Portugal desde 1815. [1]
Essa inversão inflamou os portugueses remanescentes na Europa, a ponto de convocarem a reunião das Cortes, um instituto legal português raramente usado ao longo da História. Cabia às Cortes discutir os rumos da nação em momentos de impasse. Desta vez, elas estavam inflamadas pela Revolução do Porto, um movimento que almejava reduzir os poderes do rei.
Sem a presença da família real na matriz, os deputados portugueses tomaram as rédeas de Lisboa, que testemunhava reflexos da onda liberal revolucionária que transbordava da França desde 1789.
Daí nasceram uma série de decretos das Cortes que rebaixavam o Brasil à condição da colônia que ele não era mais. Ao longo de 1821, as Cortes tentaram retomar a administração do Brasil, por meio de instalação de novos tribunais, controle sobre o fisco, designação de interventores militares (governante de armas) e comandos para que as províncias reportassem a Lisboa diretamente (não ao Rio de Janeiro). [2]
Não satisfeitas com os ataques institucionais, as Cortes eram hostis à família real, a ponto de pretender mandar nela. Conseguiram o retorno de D. João VI a Lisboa, sob pena de perda do trono, e almejaram fazer o mesmo com D. Pedro. O pretexto para a volta do príncipe era para que completasse sua educação. A ordem tinha o duplo intuito: humilhar o herdeiro que supostamente não teria qualidades para reinar e incutir nele as ideias liberais da Revolução do Porto. [3]
Embora relutante, Pedro decide permanecer no Brasil (Dia do Fico). Mais do que isso: o próprio D. João VI deu-lhe a chave legal para o futuro processo de independência, ao mantê-lo no Brasil como regente detentor das faculdades práticas de governo: administração do erário, uso das armas para fazer a guerra e administração da justiça.
A legitimidade da independência brasileira ainda se prova por outra frase de D. João. Ele diz ao filho que “se o Brasil tiver de se separar”, que seja para permanecer nas mãos de alguém de seu sangue. A independência brasileira foi, em última instância, consentida. [4]
Consentimento dos governados. O consentimento do governante para que a cessão ocorra é raro, mas o consentimento do governado para manter a união é imprescindível. O Brasil tentou permanecer no reino português, contanto que houvesse atendimento aos interesses brasileiros.
O brasileiro era leal à sua monarquia, por diversos motivos. Havia um certo fascínio pela presença da família real, presença esta que modernizou a então colônia. A família real trouxe a abertura de portos, fundação de bancos e todo o aparato cultural que a sede do reino demanda. [5]
Portanto, na dualidade de poderes entre a realeza e as Cortes, apontada por Raymundo Faoro [6], o brasileiro comum não teria dúvida de optar pelos Bragança. Mesmo assim, deputados paulistas eleitos para comparecer às Cortes tinham o interesse verdadeiro de manter a união.
Os irmãos Andrada têm discursos registrados a respeito da união ainda possível do Brasil a Portugal, a ponto de o próprio José Bonifácio expedir ordens para que os deputados paulistas buscassem o entendimento com a metrópole. Os pleitos brasileiros centravam-se especialmente na igualdade política entre os súditos dos dois lados do Atlântico e na preservação de um governo central no Brasil a quem as províncias locais deveriam obedecer. [7]
Porém, as Cortes responderam às petições brasileiras com dureza. Embora o Brasil fosse maior em população e território, a proporção de deputados era de dois portugueses para um brasileiro. A maioria de deputados lusitana deliberou sobre a situação do Brasil antes da chegada dos deputados ultramarinos. Exemplo disso foram as Bases da Constituição de 1821. Legislar sobre o Brasil sem a participação de brasileiros no debate era não só imoral como uma quebra de promessa da parte dos portugueses. [8]
Início de uma Identidade nacional. Como visto, foi a intransigência portuguesa que despertou o sentimento independentista no Brasil, que era uma terra muito diferente daquela mantida por 300 anos sob domínio lusitano.
O Brasil passou longos anos evoluindo de colônia para nação. Embora alguns autores advoguem pela teoria de que o Estado surgiu no Brasil antes da nacionalidade, há diversos elementos históricos que corroboram a noção de brasilidade como distinção nacional.
O Brasil é geograficamente separado de seus vizinhos por longas faixas de terra, por um lado, e pelo Atlântico, do outro. Recebemos imigrantes de todos os continentes que convivem em profunda miscigenação, a ponto de não haver um fenótipo brasileiro típico. Aqui foi desenvolvida uma cultura muito particular, ilustrada por um jeito de falar, uma culinária e uma conduta muito próprios.
É certo que essa massa heterogênea de pessoas demoraria anos para formar uma unidade, a custo de sangue para debelar revoltas separatistas. Mas a massa tinha uma característica única no mundo: a formação de um novo povo a partir de contribuições dos povos americanos, do colonizador europeu e do escravo africano. Essa mistura foi mais profunda no Brasil. [9]
Até politicamente o Brasil começou a se desenvolver de forma autônoma, não só pela presença da família real, mas pelas lentas comunicações transatlânticas do século XIX. Chegamos ao ponto de haver um partido brasileiro e um partido português bem distintos. [10]
Para esse corpo nacional em consolidação, não faria sentido perder os privilégios adquiridos em 1808 com a transmigração da Corte portuguesa. Por que os brasileiros aceitariam retrocesso na sua vida política e econômica?
Por fim, os brasileiros tinham um líder. D. Pedro estava mais alinhado com as posições brasileiras do que com as imposições das Cortes de Lisboa. Juridicamente, a independência em forma de monarquia seria um projeto coerente. O costume da nacionalidade luso-brasileira era monárquico, e a forma republicana havia fracionado os vizinhos sul-americanos. [11]
Recursos de poder. Comparando Brasil e Portugal em 1822, era fácil perceber que Portugal é quem precisava do Brasil, não o contrário. Raymundo Faoro atesta que, no começo do século XIX, o Brasil era a única colônia portuguesa que sustentava a monarquia. “O Brasil, sustentáculo do reino, torna-se seu refúgio, com imediatas consequências sobre a própria estrutura do reino, mal seguro e flutuante sem os recursos americanos, suas rendas, tributos e comércio.” [12]
Havia precedente diplomático na região, dadas as independências da américa hispânica e da revolução americana.
“Porque não se havia de tornar livre o Brazil, que era Úm mundo e que acabava de dar seguro e honroso. asylo por treze annos á dynastia deposta por Napoleão? Quem tinha condições para tanto, tinha tambem condições para por si se governar, para assumir as responsabilidades do seu destino.” [13]
Em suma, o Brasil era uma nação madura para seguir voo solo. Se não houve acordo com a metrópole, se as condições de consentimento brasileiro não foram observadas, se a nação brasileira desenvolveu características que a distinguia dos portugueses e se o reino unido almejava subjugar em vez de colaborar, a independência se reveste de legitimidade. [14]
“É natural que o filho chegado á maioridade se emancipe, e succede, entre as nações como entre os individuos. A phase de subordinação cessara pela força das circumstancias; (...) A igualdade feria porem o sentimento. geral do reino que por trez seculos representara o papel de metropole, (...) Havia de por isso, chegar, como chegou, o dia em que a mesma igualdade seria illudida no espírito e desvirtuada na pratica.” [15]
Qualquer movimento de independência é certamente traumático. Segundo Edmund Burke, apenas a quebra das nossas tradições e ruptura com a herança valorosa do passado justificaria uma intervenção para derrubar um governo. [16] O brado do Ipiranga foi, então, um grito justo e necessário.
Notas
Para uma lista dos decretos recolonizadores, ver a Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados (https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/18299). O Senado tem um livro que documenta as discussões nas Cortes. O Diário das Cortes Gerais deixa claro o intuito de recolonização do Brasil. “As queixas contra certas taxas e a apreensão da revivescência do monopólio comercial cediam agora o passo a realidades afrontosas aos brios nacionais. Clamavam contra o comando das armas e contra as tropas que Portugal lhes mandava, comando e tropas que visavam a assegurar a dominação de um reino sobre o outro com flagrante violação da igualdade política prometida pela regeneração ao ultramar transatlântico.” Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1083/690120.pdf?sequence=4&isAllowed=y
O decreto que manda o retorno de Pedro é este: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-1-10-1821.htm. A intenção de incutir nele as ideias liberais foi estudada em Os donos do poder, de Raymundo Faoro.
Para os diálogos entre D. João VI e D. Pedro, ver o livro 1822, de Laurentino Gomes.
Sobre a popularidade de D. João VI, Laurentino Gomes cita Oliveira Lima em 1808. Futuramente, Pedro I, Pedro II, Leopoldina e Isabel mostrar-se-ão extremamente populares no país.
Ver Os donos do poder.
Ver as Lembranças e apontamentos do governo provizorio da provincia de S. Paulo para os seus deputados, assinadas pelo próprio D. Pedro (https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4175). “O regente aceitou a independência forçado das circunstâncias, e nem podia ser de outro modo porque ninguém espontaneamente e sem vantagem malbarata o seu patrimônio”, extraído de https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1083/690120.pdf?sequence=4&isAllowed=y.
“A anticipada approvação, por exemplo, da Constituição que as Côrtes de Lisboa viessem a elaborar e que teria seguramente por modelo a Constituição Hespanho�a de 1812, fôra imposta a Dom João VI por agitadores de quartel e de rua que para tanto amotinaram tropa e populaça, em opposição ao projecto mais prudentemente aventado de redigirem no Rio de Janeiro, com destino ao Brazil, uma lei organica·particular, de accordo com as condições e interesses do reino americano, os procuradores das camaras da sua capital e cidades de provincias.” Oliveira Lima, em http://funag.gov.br/biblioteca/download/o-movimento-da-independencia.pdf.
Para um estudo da miscigenação brasileira, ver Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre.
Após a partida de D. João de volta para Portugual, em 1821, formaram-se o partido português e o brasileiro. Este era defensor das aberturas econômicas que o João VI havia promovido e dava certa liberdade ao Brasil. Ver https://www.fdcl.com.br/revista/site/download/fdcl_athenas_6_jose_cesar.pdf. Como ensina Boris Fausto, não eram partidos no sentido eleitoral do termo, mas correntes de pensamento. Ver História do Brasil, deste autor.
Boris Fausto aponta o risco de o Brasil ter se fragmentado sob uma precoce república. Ver História do Brasil.
Ver Os donos do poder.
Oliveira Lima, em http://funag.gov.br/biblioteca/download/o-movimento-da-independencia.pdf.
“That to secure these rights, Governments are instituted among Men, deriving their just powers from the consent of the governed. That whenever any Form of Government becomes destructive of these ends, it is the Right of the People to alter or to abolish it, and to institute new Government”. Trecho da Declaração de Independência dos Estados Unidos.
Oliveira Lima, em http://funag.gov.br/biblioteca/download/o-movimento-da-independencia.pdf.
Para conhecer o raciocínio de Burke, ver as Reflexões sobre a Revolução na França.
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