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Decisão do STF sobre reintegração de posse coloca em dúvida o direito de propriedade

  • Foto do escritor: Guilherme Sousa Rocha
    Guilherme Sousa Rocha
  • 23 de dez. de 2022
  • 5 min de leitura

Você tem um imóvel ou sonha adquirir um? Provavelmente você vai precisar de um esforço de uma vida inteira para a aquisição do espaço. Contudo, a sua propriedade pode ser perdida de uma hora para outra.


O ministro do STF Luís Roberto Barroso, sozinho, decidiu que propriedades invadidas em todo o Brasil não podem ser desocupadas imediatamente. A ordem consta na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828, um processo recheado de erros processuais e descumprimentos da lei.


Para a compreensão do caso, é importante saber a cronologia:


20/3/2020: o Congresso reconhece o estado de calamidade decorrente da pandemia da Covid-19 (Decreto Legislativo nº 6/2020).


14/4/2021: o Psol entra com a APDF 828 no Supremo Tribunal Federal para suspender reintegração de posse em áreas invadidas, sob argumento de que os invasores não poderiam perder moradia durante a pandemia.


7/10/2021: entra em vigor a Lei nº 14.216/2021, que traz medidas excepcionais sobre invasões e proíbe reintegrações de posse até 31/12/2021.


22/4/2022: o Ministério da Saúde declara encerrado o estado de emergência da pandemia.


31/10/2022: Barroso suspende todas as reintegrações de posse do Brasil enquanto não houver uma comissão de mediação. Ou seja, ocupações irregulares não podem ser desfeitas de imediato.


Em quê se baseia o pedido do Psol?

O requerente ingressa com ação na justiça apresentando o cenário da moradia durante a pandemia de Covid-19. Alega que pessoas sem moradia formal estão expostas à pandemia e que, portanto, não poderiam ser desalojadas das áreas que ocupam. É fato que a situação dessas pessoas é preocupante, mas também deve ser considerado que essas pessoas ocupam propriedade de terceiros, públicas e particulares.


Repare que o assunto “moradia” é de competência comum [1] entre o governo federal, os estados e os municípios. Por ser algo que envolve a ordenação urbana e a ocupação do solo, não poderia ser decidido de Brasília. Tanto é que o Psol apresenta casos de diversas cidades do país, que seriam muito mais bem discutidos no Executivo local e nos Tribunais de Justiça (não no Supremo).


Como exemplo, o Psol cita a Lei nº 6.657//2020, do Distrito Federal. De fato essa lei impede a reintegração de posse de áreas invadidas, mas o faz apenas durante a emergência da pandemia. Essa emergência acabou em abril de 2022, mas Barroso decide seis meses depois.


Desprezando essa análise caso a caso nas localidades, o Psol faz um pedido erga omnes, ou seja, de efeito geral, para todos, em flagrante desrespeito à federação. Enquanto isso, propriedades públicas e privadas estão ocupadas em todo o país, sem possibilidade de os donos pedirem seu controle de volta imediatamente.


O problema de usar ADPF

Essa decisão de Barroso é a QUARTA medida cautelar tomada. Mais de um ano depois de ajuizada a ação, não há solução definitiva estabelecida pelo conjunto de ministros. A ADPF está sendo usada para disparar liminares monocráticas que só depois passarão pelo plenário.


Por si só, esse tipo de ação é anômalo. É conhecido entre os juristas por ser uma ação genérica, que só é usada quando não se consegue encaixar o pedido em uma ação concreta. Na prática, as ADPFs são usadas para pedir aquilo que a lei não prevê ou que não foi apreciado no Legislativo.


No caso narrado na ADPF 828, o objetivo é nobre: garantir habitação digna para as pessoas vulneráveis. Contudo, o local para esse pleito é o Executivo local. Mas o partido requerente almeja mais: em uma tacada, quis impor um regime habitacional em todo o país, usando normas sem eficácia.


A doença da lei e a reserva do possível

Por incrível que pareça, o pedido do Psol não é absurdo, pois há dispositivos legais que dão um pouco de razão ao partido. Os constituintes fizeram um texto normativo inchado (“analítico”), que confunde desejos com direitos. Na prática, a Constituição brasileira ignora que “querer não é poder”. Seria incrível que todos magicamente dispusessem de alimentação, moradia, saúde, educação, mas não basta escrever no papel esses sonhos para que eles se tornem realidade.


O resultado é termos uma legislação que promete tudo o que governo nenhum conseguiria entregar. Moradia é uma condição necessária para a dignidade humana, mas isso não quer dizer que a coletividade seja obrigada a custeá-la para um indivíduo. A moradia só pode ser um direito em um sentido muito específico: o Estado não pode impedir alguém de adquirir a sua moradia. Ou seja: os cidadãos têm o direito de buscar a compra de um imóvel. Mas não é possível conceber que cada brasileiro deva ter a sua casa adquirida com recursos públicos.


Por isso a lei brasileira é uma fábrica de frustração social. O indivíduo vê escrito que tem direito à moradia, enche o peito para repetir essa vontade, mas não vê a casa brotar toda mobiliada no seu bairro preferido. O Executivo passa o dia inteiro tentando cumprir a promessa do Legislativo. Presidentes, governadores e prefeitos prometem tudo nas eleições. E o Judiciário tira o peso das costas ao sentenciar que sim, conforme a Constituição diz, todos têm direito à moradia. Cumpra-se. Outras pessoas que se virem para garanti-lo.


Houve um tempo em que os julgadores brasileiros tinham sensibilidade à reserva do possível. Aplicavam a lei básica da economia de que os recursos são limitados. Porém, essa lei da natureza tem sido revogada na cabeça dos juristas, que a contornam alegando a necessidade do “mínimo existencial”. Então caberia ao executor de políticas públicas garantir o mínimo dos direitos fundamentais, por mais subjetivo que seja o tal mínimo.


A própria Lei nº 14.216/2021 dá respaldo à decisão de Barroso. O art. 2º, § 4º da lei garante que haja mediação prévia antes das desocupações coletivas, com inspeção judicial nas áreas em litígio. Portanto, se um grupo invadir um terreno seu, construído ou não, você precisa esperar a vinda do juiz, do Ministério Público e da Defensoria antes de qualquer providência para reaver o imóvel.


Como se não bastassem as normas legais mal redigidas e as interpretações anacrônicas dos julgadores, o ativismo jurídico floresce nesse ambiente permissivo. Parte do pedido do Psol se baseia em dois documentos infralegais. O primeiro é a Resolução n.º 10/2018, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que dispõe de autorização legal para genericamente promover os direitos humanos. É a brecha necessária para que burocratas emitam normas fora do processo legislativo, como a dita Resolução nº 10.


Essa resolução interfere diretamente na lei e tenta amarrar as autoridades para que não desfaçam ocupações irregulares imediatamente. Exige autorização judicial e soluções alternativas perante o direito à propriedade. Criminaliza até mesmo o direito de petição ao Judiciário quando um proprietário de terra solicita ao juiz que tome providências para a desocupação.


Também o pedido do Psol se baseia em outro texto não legislativo, desta vez a Recomendação n.º 90, do CNJ. Embora seja um órgão apenas administrativo, o Conselho Nacional de Justiça tem se notabilizado por expedir orientações aos magistrados na atividade judicial, como se não existisse Processo Penal e Processo Civil para essa finalidade.


Seu imóvel nem sempre é seu

Em resumo, a situação é esta: um partido político vai à Justiça para defender pessoas que são vulneráveis, sim, mas que não têm razão de ocupar terreno alheio. O pedido desse partido se baseia em normas legais emergenciais, emitidas durante um estado pandêmico que já foi encerrado. O juiz decide sozinho sucessivas medidas cautelares em vez de mandar a questão para julgamento colegiado definitivo.


Quem detém um imóvel fica sem saber o quanto pode dispor da propriedade. Quem procura usar a decisão judicial de forma maliciosa tem incentivo para invadir terrenos. Os mandados judiciais anteriores para reintegração de posse ficam suspensos, aumentando a incerteza jurídica. Tudo é fundamentado por leis populistas e invenções burocráticas que não seguem o processo legislativo.


A situação das pessoas pobres que não têm onde morar merece todo o respeito e tratamento das autoridades. O que essas pessoas não merecem é serem utilizadas como massa de manobra da política.


Você que constrói a sua casa, incrementa a renda alugando um imóvel, batalha em um escritório da sua empresa está na berlinda. A lei está sendo usada para impor direitos dos outros a você, sem levar em conta os direitos de verdade que todos temos.


[1] Constituição Federal, art. 23, IX.

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