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O resgate de John Locke

  • Foto do escritor: Guilherme Sousa Rocha
    Guilherme Sousa Rocha
  • 6 de set. de 2022
  • 3 min de leitura

John Locke (1632-1704) merece ser relido (temo que, em alguns casos, eu deva dizer lido) pelos juízes brasileiros.


Nome fundamental do Iluminismo, Locke estabeleceu as bases para o governo representativo e limitado, baseado no consentimento dos cidadãos em vez do arbítrio ou da força bruta. Hoje esta parece uma ideia óbvia, mas na época não era: as monarquias absolutistas se legitimavam por força, prestígio ou tradição. Pouco importava se o regime havia sido instituído com a concordância dos governados.


Para Locke, a liberdade é o estado natural do ser humano. E, embora remeta à Bíblia para demonstrar que seu argumento é coerente com as Escrituras, ele também enfatiza que a razão pura (sem o auxílio da revelação divina) nos leva à mesma conclusão.


O ideário de Locke leva a governos limitados (mas com tarefas bem delineadas) e cidadãos vigilantes. Seu livro Dois Tratados sobre o Governo o teria uma forte influência sobre a independência dos Estados Unidos, cuja declaração inclui o seguinte trecho:


“Nós temos estas verdades por auto-evidentes: todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. E que, a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados.”


É um entendimento radical, diretamente inspirado em Locke. Essa visão tem como consequência uma ideia igualmente radical: a de que, quando governos excedem os poderes que a população consentiu em ceder a eles, daí surge um legítimo direito à rebelião. A Declaração de Independência dos Estados Unidos também toca neste assunto: “Sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade”, afirma o documento.


Os autores da declaração, entretanto, em seguida acrescentam uma ressalva: “A prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros”, mas apenas “quando uma longa série de abusos e usurpações,

perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto”. Ou seja: o direito à rebelião deve ser usado com cautela, embora seja legítimo.


Um elemento central da obra de Locke é a noção de lei natural. Antes que haja governos, constituições, o Legislativo e o Judiciário, existe uma lei universal, imutável e que pode ser encontrada pelo homem usando sua razão. É ela que fundamenta os demais direitos. Essa lei natural, de acordo com Locke, inclui o direito que cada um possui de proteger sua vida, de utilizar sua propriedade e de desfrutar de sua liberdade. “O estado de natureza tem uma lei da natureza para governá-lo, o que cria obrigações para todos. E a razão, que é essa lei, ensina a todos que se dispuserem a consultá-la que, como somos iguais e independentes, ninguém deve prejudicar ao outro em sua vida, saúde, liberdade ou posses.”, ele escreve. [1]


Negar esse aspecto da obra de Locke (e de autores que o precederam, como Tomás de Aquino e Hugo Grócio) é negar também a existência de critérios morais absolutos. O genocídio dos judeus na Alemanha nazista não era ilegal de acordo com as leis alemãs; ainda assim, é evidente que o Holocausto foi (objetivamente) errado. Cada uma das 6 milhões de pessoas mortas pelo regime nazista teve violado o seu direito natural à vida.


Sem essa régua absoluta e universal, não é nem mesmo possível dizer que uma lei aprovada pelo Congresso é boa ou ruim. É preciso algo acima da lei positiva (como se chama uma lei criada pelo processo legislativo) que sirva como critério de avaliação. Só assim é possível afirmar que uma lei específica é justa ou injusta. Justa ou injusta em comparação com qual régua? A resposta é a lei natural.


A lei natural é complementada pelas leis positivas, que podem variar de lugar para lugar. Não há nada na natureza ou na revelação divina que nos obrigue a dirigir do lado direito da rua em vez do esquerdo. Mas, como Locke afirma, as leis positivas não podem contradizer a lei natural — da mesma forma que uma decisão judicial que revogasse a lei da gravidade não teria qualquer eficácia.


Por isso, é possível dizer que em temas como o aborto, o Judiciário de alguns países desrespeita não apenas a Constituição em vigor, mas também uma lei da própria natureza, visível aos olhos de todos.


Nenhum governo tem a prerrogativa de retirar um direito que não foi criado por ele.


 

Nota

[1] Segundo Tratado de Governo, parágrafo número 6.

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