O STF não é um superpoder
- Gabriel de Arruda Castro
- 8 de nov. de 2022
- 10 min de leitura
Atualizado: 23 de dez. de 2022
O inchaço das funções do Supremo prejudica a todos, inclusive o próprio Supremo

O inchaço das funções do Supremo prejudica a todos, inclusive o próprio Supremo
O que fazer quando os mecanismos legais deixam de proteger a lei? O único caminho é a reforma. O Brasil carece urgentemente de uma reforma do Judiciário que fortaleça e recapacite a magistratura e funções essenciais à Justiça.
Embora vários aspectos jurídicos devam ser alvo de reforma – como o Código Penal, as leis de execução penal, o código tributário –, devemos começar pelo coração do sistema judicial. Esse coração se chama Supremo Tribunal Federal (STF).
Designado como um dos guardiães da Constituição, o STF teria o papel de ser o bastião da serenidade e da segurança jurídica. Isto é, a despeito de qualquer insanidade que possa se instaurar no país, caberia ao STF colocar a bola no chão e restabelecer a normalidade.
A ideia de uma Suprema Corte nasceu para que cidadãos mais experientes e sábios tomassem decisões que exprimissem a vontade do povo, mesmo que isso confrontasse a vontade dos representantes do povo.[1] Daí a Corte ser separada do Senado, que resguardou para si capacidades de julgamento como o impeachment.
O modelo de 1988 determinou essa separação de poderes, acrescida da inércia do Judiciário e da primazia da lei. Contudo, nenhum deles tem sido respeitado.
Por que chegamos a este ponto? Em primeiro lugar, o STF encarnou o papel de superpoder ao testar os limites de suas decisões e ao fazer prevalecer interpretações equivocadas sobre seu papel, afinal “(...) em nenhum momento o Poder Judiciário foi tido pela própria Constituição de 1988 como responsável pela condução dos destinos de nossa comunidade política.”[2]
O ativismo judicial é ainda mais grave quando feito por liminar. A liminar é o poder que o juiz tem de dar uma decisão sozinho (monocrática) se considerar que há indícios de haver direito em jogo e se há perigo de esse direito ser perdido caso a resposta judicial definitiva demore. Se mal utilizada, a liminar vira uma arma que o juiz dispara contra qualquer situação.[3] Mesmo processos bem feitos em outras instâncias e esferas, com toda a tramitação e trânsito em julgado, podem ser revertidos por uma frase de um ministro do Supremo.
Todo esse problema começa quando o Legislativo falha na sua função institucional de espelhar os anseios da sociedade. Enquanto a credibilidade parlamentar é erodida por corrupção e ineficiência, as demandas sociais procuram o caminho mais curto. Surge a judicialização de tudo.
O vício de levar tudo à apreciação da Suprema Corte é carregado desde as primeiras constituições do Brasil. A lei imperial de 18/9/1828 e a Constituição republicana de 1891 já deixavam brechas para que tudo fosse objeto de apelação até o último recurso na última instância. Até mesmo na Antiguidade, Aristóteles relata o desenho feito por Hipodamos de Mileto, segundo o qual a polis teria um tribunal supremo que julgaria "todas as causas que não parecessem bem julgadas”.[4] Consequentemente, o poder central determina tudo sobre a vida local.
É nesse contexto que o STF começa a inchar. Em vez de dar um basta e reconhecer seu papel de mero intérprete de leis escritas pelos outros, ele mesmo começa a decidir qualquer coisa. Afinal, uma liminar é mais simples de expedir se comparada à extensão do processo legislativo.
Rapidamente, o Supremo se anaboliza a ponto de sequer precisar de que alguém o provoque. Ele sai da inércia e parte para a ação. Despacha sobre tudo, até sobre o que não lhe é perguntado. Ele abre seus próprios inquéritos e decide além de sua competência.[5]
A tragédia se completa quando o guardião da Constituição ignora a lei que deveria defender. Em alguns casos, não importa quão clara seja a redação constitucional, o STF sempre encontra uma argumentação que a contorne. Um dos exemplos mais flagrantes é a ADI 4.277/2011, que reconhece a união homoafetiva. Dez anos depois a Constituição mantém seu artigo 226 com a redação “homem e mulher”. Mas a Corte preferiu passar por cima do Legislativo e reescrever a História.
Como um exemplo ainda mais grave, podemos citar a ADO 26/2019, que criou o tipo penal de homofobia, algo que apenas por lei poderia ser feito.
Acontece então o que nem Alexander Hamilton previu. O pensador americano achava que o Judiciário não teria meios de usurpar as funções de outros poderes.[6] Mas o que Hamilton chamou de mero “fantasma” tornou-se um pesadelo da vida real. O Supremo tem agido no território do Legislativo, muitas vezes provocado por este mesmo, por meio de ações ajuizadas por partidos políticos.
Quem ganha com a desfiguração do Supremo Tribunal Federal? Apenas os poderosos da vez. Se o papel original da Suprema Corte não for resgatado, ela mesma perderá prestígio.
Ainda dá tempo para a credibilidade do STF ser restaurada. Basta retornarmos ao caminho da legalidade e da Constituição. Ouçamos mais as leis que os homens.
Precisamos de outro STF
Resgatar o valor do Supremo Tribunal Federal (STF) é uma medida urgente para o Brasil. Hoje o país joga uma partida de futebol em que o juiz não é isento. Boa parte do problema está na conduta de alguns ministros, que interferem nas atribuições do presidente da República e do Congresso. A regra do jogo precisa ser revista para ajudar o próprio juiz.
Da forma como o STF funciona hoje, agendas políticas dominam facilmente a pauta do Tribunal. Podemos resumir os motivos para isso em: 1) a escolha dos ministros se dá pela mera vontade do presidente da República; 2) os ministros não prestam contas de sua atuação; 3) os ministros tomam para si todo o Poder, alegando que “o Judiciário tem o direito de errar por último”[7]; 4) esse colegiado mal escolhido, blindado de cobranças e todo-poderoso permanece no cargo por tempo excessivo.[8]
Vamos analisar cada problema e propor soluções:
1) Como escolher os melhores ministros para o Supremo?
Hoje em dia, o requisito fundamental para ser ministro do Supremo é ser amigo do presidente da República. Não importam a carreira na magistratura, a solidez acadêmica ou a vivência nas audiências. Basta ser próximo do presidente.
Isso acontece porque a legislação exige pouco do currículo do indicado. A idade exigida é jovem , a reputação não é verificada, e o conhecimento não é aferido. Na prática, não há filtros rigorosos para a escolha do presidente, até porque o Senado não faz o contrapeso na sabatina.
Para corrigir o método de escolha, precisamos trazer para o STF juristas comprovadamente experientes. Como em qualquer carreira, só se chega ao topo percorrendo o caminho todo. Por isso, o ministro do Supremo deve ser juiz de carreira, com pelo menos vinte anos de experiência jurídica. Assim, eliminamos o candidato aventureiro, que se limitou a vida toda a militância partidária ou a teorias acadêmicas desconectadas da realidade.
Dezenas de iniciativas parecidas tramitam no Congresso Nacional. A PEC nº 225/2019, por exemplo, muda a composição do Supremo ao exigir que parte dos integrantes seja da magistratura e que parte tenha experiência jurídica de dez anos.
2) Quanto tempo um ministro pode ficar no STF?
Escolhido um magistrado profissional, cabe refletir sobre o período de serviço dele. Desde os Artigos Federalistas, prevalece o entendimento de que o juiz deve ser vitalício. Isso significa que o juiz carrega suas prerrogativas para a vida toda, mesmo se aposentado.
Essa regra serve para proteger o juiz de coações. Contudo, ela é mais válida para as instâncias inferiores. Um juiz local será um juiz cada vez melhor conforme o tempo passa. Ele atuará em cidades e causas diferentes; um dia será promovido a desembargador.
Porém, a situação para o ministro é diferente. Se ele ocupar uma cadeira no STF por décadas, não haverá a oxigenação[9] da justiça. O Brasil passou anos e anos sob o efeito das escolhas de José Sarney e Collor de Melo. Se vitalícios, os mesmos ministros julgarão os mesmos assuntos, no topo da carreira.
Oras, o topo deve ser limitado. O período de serviço prolongado no estágio maior da magistratura transforma o ministro em um senhor feudal inamovível. Cabe limitar a sua participação no STF para que a própria Corte se beneficie do revezamento.
Um mandato de quinze anos seria suficiente. Primeiro, o indivíduo será escolhido entre juízes com vinte anos de experiência. Em seguida, ele não poderá ser ministro por mais de quinze anos, fechando a contribuição que ele pode dar ao país. Esse tempo é suficiente para consolidar uma jurisprudência, dar previsibilidade para os momentos de mudança e defender o ministro contra pressões indevidas.
No Congresso Nacional tramitam iniciativas semelhantes, que elevam a idade de ingresso do novo ministro e limitam sua permanência no cargo.[10] Há também propostas para exigir concurso público para o cargo, como a PEC nº 52/2015, meritória em também exigir mandato temporal, embora exagere quanto ao uso do concurso público para essa finalidade.[11]
3) Como garantir que o STF cumpra suas obrigações?
A lei no Brasil divide o Poder entre pessoas diferentes, para prevenir a tirania. Portanto, não há que se falar em “a palavra final é do Supremo”. O Supremo se pronuncia definitivamente apenas sobre o que lhe cabe. Se determinado assunto cabe ao Itamaraty ou à professora da escola ou ao gari da esquina, não cabe ao Supremo despachar.
A primeira coisa a se definir, então, é o território de cada um dos Poderes[3] . Quando um Poder for vilipendiado, decreto legislativo ou decreto presidencial devem restabelecer a normalidade. E é muito importante que um Poder dê suporte ao outro contra a má conduta do terceiro.
Vale também implementar o quórum qualificado de decisões para que o STF declare a inconstitucionalidade de leis. Assim, apenas um amplo consenso entre os ministros poderia alterar o que o Legislativo decidiu.
Não se trata aqui de um Poder se rebelar e desobedecer a ordem de outro. Trata-se, ao contrário, de cada Poder legitimamente defender o seu espaço. Não há desobediência contra autoritarismo; desobedecer significa, na verdade, o retorno à normalidade.
Isso pode acontecer em relação ao próprio Supremo. Se um dia uma decisão judicial for desrespeitada, o braço armado do Estado pode ser acionado para fazer valer. Mas o STF só terá legitimidade para tal quando ele mesmo se der ao respeito e não entrar na seara alheia.[12]
4) Como retirar do cargo um ministro ruim? (ou quem vigia o vigilante?)
Quem recebeu delegação para supervisionar o STF em nome do povo é o Senado. Todo candidato a senador deveria dizer aos eleitores o que pretende fazer em relação a eventuais más condutas do Supremo. Da mesma forma, a necessária sabatina de candidatos a ministro deveria ser muito mais técnica e rigorosa.
O pedido de impeachment contra ministros do Supremo deveria ser levado à mesma comissão de constituição e justiça que sabatinou o ministro. Essa apreciação pela comissão deve ser imediata para averiguar a admissibilidade do processo. Em seguida, com direito de defesa, o plenário do Senado deveria ser convocado para decidir se o ministro deve continuar no cargo ou não.
Chama a atenção como pedidos de impeachment repousam na gaveta do presidente do Senado. Seja pleito do presidente da República, seja abaixo-assinado com um milhão de assinaturas, o povo não consegue ver seu pedido apreciado.
Em nenhum caso, o pedido de impeachment deveria depender da mera vontade do presidente do Legislativo. Ele não deveria ter o poder de pautar ou engavetar, do contrário ele consegue manobrar o processo conforme sua conveniência. Negar tramitação ao impeachment é privar o povo da chance de remover o servidor público ruim.
Notas
[1] “De outro modo, não há por que supor que a Constituição poderia pretender capacitar os representantes do povo a substituir a vontade de seus eleitores pela sua própria. É muito mais sensato supor que os tribunais foram concebidos para ser um intermediário entre o povo e o legislador, de modo a, entre outras coisas, manter este último dentro dos limites atribuídos a seu poder.” Artigos Federalistas, artigo 78.
[2] Diogo Bacha e Silva, em Os contornos do ativismo judicial no Brasil. https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/50/199/ril_v50_n199_p163.pdf . No mesmo artigo: “De qualquer modo, nunca é demais lembrar que o próprio Poder Judiciário poderá ser responsável pelos retrocessos de políticas conquistadas democraticamente pela sociedade. A história é repleta de erros cometidos pelo Poder Judiciário. Esta pequena digressão histórica e teórica sobre o ativismo judicial no Brasil dá-nos conta de que nem sempre a atuação judicial é o melhor remédio para os males sociais.”
[3] “Em primeiríssimo lugar, deveriam ser restringidas, ao máximo, as competências de natureza monocráticas. A autoridade do Tribunal não pode ser exercida de forma fragmentada por cada um de seus Ministros.” Supremocracia, página 458.
[4] A Política, livro segundo, capítulo 5.
[5] “Nem todos os “desejos”, “interesses” e “vontades”, ainda que legítimos e aceitáveis, podem ser considerados como normativamente reivindicáveis ou como pedidos juridicamente possíveis. E ainda que sejam reivindicáveis, alguns desses “interesses”, “desejos”, “vontades” e mesmo alguns “direitos” devem ser postulados perante ou o Poder Legislativo ou perante o Poder Executivo.” Luís Carlos Martins Alves Júnior, no artigo Decifra-me ou devoro-te: uma breve análise do ativismo judicial à brasileira, acessado em 27/6/2022, https://jus.com.br/artigos/77764/decifra-me-ou-devoro-te-uma-breve-analise-do-ativismo-judicial-a-brasileira.
[6] “Pode-se, em último lugar, observar que o suposto perigo de usurpação do judiciário sobre a autoridade legislativa, que tem sido reiterado em muitas ocasiões, é na realidade um fantasma. Algumas interpretações erradas e contravenções da vontade da legislatura podem acontecer de vez em quando; mas eles nunca podem ser tão extensos a ponto de constituir uma inconveniência, ou em qualquer grau sensato para afetar a ordem do sistema político. Isso pode ser inferido com certeza, da natureza geral do poder judiciário, dos objetos a que se refere, da maneira como é exercido, de sua fraqueza comparativa e de sua total incapacidade de sustentar suas usurpações pela força. E a inferência é grandemente fortalecida pela consideração do importante controle constitucional que o poder de instituir impeachments em uma parte do corpo legislativo, e de determiná-los na outra, daria a esse corpo aos membros do departamento judicial. Isto é por si só uma segurança completa. Nunca pode haver o perigo de que os juízes, por uma série de usurpações deliberadas sobre a autoridade do legislador, arrisquem o ressentimento conjunto do órgão que lhe foi confiado, enquanto este órgão possua os meios de punir sua presunção, removendo-os de seus postos. Ao mesmo tempo em que deve eliminar todas as apreensões sobre o assunto, oferece, ao mesmo tempo, um argumento convincente para constituir o Senado como tribunal para julgamento de impeachments.” Artigos Federalistas, artigo 81. [7] O direito do Judiciário de errar por último vem de uma frase de Rui Barbosa. Essa expressão que concede amplos poderes não tem amparo na Constituição Federal de 1988.
[8] “O STF deveria ser o guardião máximo dos direitos do cidadão e do devido processo legal. No entanto, detém poder monopolista e a última palavra em temas legais. Ademais, não sofre controle externo nem pode ter suas determinações revogadas. Como o nome diz, é supremo.” Hélio Beltrão, em https://www.mises.org.br/article/3124/quem-vigia-o-stf .
[9] Nesse sentido, ver PEC nº 225/2019. É o que a PEC nº 52/2015 também defende, sob o nome de “arejamento”.
[10] O deputado federal pelo Paraná Paulo Eduardo Martins tenta protocolar uma PEC que estabelece mandato de nove anos: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/nova-pec-limita-poderes-do-stf-e-estabelece-mandato-para-ministros-o-que-diz-a-proposta.
[11] Segundo a PEC nº 52/2015, o presidente da República não poderia nomear aqueles que o julgariam (STF e TCU).
[12] “Entendo que algumas mudanças de natureza institucional são indispensáveispara que possamos reduzir o mal-estar supremocrático detectado neste texto. Em primeiro lugar, seria a redistribuição das competências do Supremo. Este não pode continuar atuando como corte constitucional, tribunal de última instância e foro especializado. Este acúmulo de tarefas, que, na prática, apenas se tornou factível graças à crescente ampliação das decisões monocráticas, coloca o Supremo e seus Ministros em uma posição muito vulnerável. Falsas denúncias e gravações ilegais são apenas uma demonstração de como a autoridade do tribunal pode ser ameaçada. É fundamental que o Supremo seja liberado de um grande número de tarefas secundárias, para exercer a sua função precípua de jurisdição constitucional.” Supremocracia, Revista de Direito da GV nº 8, página 457, Oscar Vilhena Vieira.
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